Sobre Polícia e Democracia.
Vinte e cinco anos da Constituição de 1988 e muitas mudanças desde então. Cresci com a democracia representativa no Brasil, nasci em 1989, no ano da queda do muro de Berlim, uma época em que se via o Comunismo dar seus últimos suspiros na União Soviética ao mesmo tempo em que a ordem democrática ia sendo restituída em várias nações. Desde então grande parte do globo vive o sistema da democracia representativa - cada nação com suas peculiaridades, é claro.
Acredito que no Brasil o sistema representativo esteja caminhando bem apesar dos percalços que toda democracia enfrenta principalmente no inicio. Não penso que seja o momento de uma nova constituição como defendido por alguns “federalistas” e outros. Ao meu ver a ideia de uma nova carta, em si é pouco democrática. Constituições devem nascer no seio de transformações sociais de vulto, quando já não é possível o recurso a outros meios, um povo precisa de segurança jurídica para se desenvolver, sem temer que da noite para o dia seus direitos sejam modificados por uma nova Lei Fundamental.
Entretanto, se não é o momento para uma nova constituição, é passado o momento para algumas reformas que repercutirão na democracia em nosso país. As leis não existem para ficarem apenas no papel, elas vem ao mundo como anseio de uma nova realidade, ou adaptação de uma situação já existente. Uma nova lei está vinculada a ideia de mudança, e muito mais importante do que ter a lei, é o acolhimento e respeito que ela angaria nos seus destinatários, o povo. Resumindo, uma constituição pode até ser democrática em seus preceitos, mas a democracia só chega a nós no momento em que esses valores são transmitidos e realizados.
É tempo de fazer valer os preceitos constitucionais, e isso é tarefa de todos (clichê, porém importante). Cada um em sua área pode agir de uma forma diferente auxiliando nessa tarefa, professores conscientizando alunos; servidores públicos prestando serviço de qualidade; nós, enquanto cidadãos, reivindicando; etc. No contexto jurídico é hora de refletirmos sobre algumas questões necessárias para a realização da democracia.
Antes de mais nada, queria pedir perdão por possíveis incorreções ou ofensas a qualquer classe que seja. Se o fiz não foi com intenção - embora saiba que de boas intenções o inferno está cheio - com o perdão da brincadeira, o objetivo não foi de generalizar comportamentos, foi antes tentar analisar a questão e trazer ao debate.
Vamos então ao que interessa, a Reforma da Polícia...
Para que possamos viver uma real democracia o povo tem que ter o direito de sair as ruas para protestar sem medo da repressão. A atuação violenta da polícia só legitima a violência dos manifestantes, retirando a autoridade e respeito que a instituição precisa para atuar. A Polícia Militar está em descredito com a população, em débito com a democracia, e não é de hoje que isso vem acontecendo. Não é preciso recorrer ao regime ditatorial para lembrar de cenas como a ocorrida em Goiânia, quando a ROTAM ficou dando voltas em torno da organização Jaime Câmara a fim de intimidar jornalistas.
Quando nos deparamos com notícias acerca da violência policial, dentre várias reações duas me parecem as mais comuns a) pensar que a atuação realmente esta correta e que a violência é necessária para se ter paz na sociedade (o que é evidentemente um perigo e um paradoxo num regime democrático, se é preciso reprimir o próprio povo e inobservar preceitos legais, regressamos à ditadura); b) acreditar que o Estado não nos representa, pois reprime o cidadão, e isso deslegitima o sistema democrático sendo apenas um passo para acreditarmos – erroneamente – que toda a polícia é ignorante, por não compreender os direitos dos cidadãos e ao mesmo tempo defender políticas corruptas e desumanas.
Mas a questão é um pouco mais complexa do que um simples maniqueísmo de policial bom ou mau, está para além do indivíduo. Mas e então, a culpa é de quem mais!? Da própria organização da polícia, da forma como ela é pensada. Se os agentes são violentos não é à toa, quando se recebe um treinamento militar o indivíduo deixa de ser civil e passa a ser um soldado, e isso não quer dizer pouca coisa, militares tem estatutos diferentes, incorrem em crimes diferentes, não tendo as mesmas prerrogativas de um servidor público civil.
Também não podemos esquecer que os policiais trabalham com o que existe de pior na sociedade, o que pode ocasionar danos emocionais irreversíveis, convivem com situações que deixaria sem sono a maioria dos civis. Esses homens são postos nas ruas sem apoio psicológico de qualidade, não passam por avaliações frequentes, e acabam muitas vezes sendo incitados por políticos, jornalistas e outros setores da sociedade a uma atuação violenta. É alguma surpresa o resultado catastrófico dessa equação?
Jornalista baleada no olho por um policial.¹ |
Ser militar é ser disciplinado, organizado, treinado, doutrinado para defender o Estado, seja o inimigo um infrator, terrorista ou um manifestante. Militar cumpre ordens, pois mesmo que se saiba que portar vinagre não é motivo para prender ninguém, acabam por ter de realizar operações sem sentido.
Em suma, militares e manifestantes não combinam.
Então pergunto de novo, o que fazer!? O que precisa mudar, dentre outras coisas, é o treinamento, deixando de ser militar e passando a ser civil. Afinal a polícia lida com cidadãos comuns, está em contato direto com a sociedade, esse organismo tão complexo que se mostra em diferentes facetas, passando de tentativa de suicídio a troca de tiros com bandidos. O problema é que cada situação necessita um agir diferente, e é preciso estar preparado para isso, preparação que ao meu ver se mostra incongruente com um regime de trabalho autoritário como o militar, o policial para proteger o civil precisa ser também civil.
Não temos que admitir sermos violentados por agentes públicos que deveriam nos proteger, foi como uma piada de mau gosto ouvir o relato de manifestantes que precisaram entrar em um prédio da UFG para “fugir” da polícia. Isso é absurdo, ter medo da polícia é absurdo.Quase todos nós já fomos vítimas de abordagens violentas, mesmo quando se pede socorro a polícia ela costuma ser grosseira e pouco receptiva, e isso eu não precisei ver em jornais e revistas ou ouvir relatos, é sabido de todos porque infelizmente é a nossa realidade.
É preciso mudar urgentemente a forma como a polícia é pensada em nosso país, o Conselho de Direitos Humanos da ONU sugeriu a extinção da polícia militar no Brasi¹. O problema, é claro, não pode passar pela simples mudança do nome dado a polícia, toda a atuação, organização e estrutura policial necessitam ser repensados – não apenas a PM. Algumas ideias podem ser adotadas como: a figura do juiz de instrução ao invés do delegado; integrar o trabalho das diferentes polícias; criar um órgão de polícia para o judiciário e MP permitindo que juízes e promotores possam atuar sem medo de serem assassinados - muitas vezes pela própria PM ou Polícia Civil etc.
Trata-se de uma questão que não se circunscreve a um problema pontual, diz respeito a toda uma concepção de democracia sendo jogada no lixo. No Brasil hoje se tortura mais do que no regime militar, o medo de protestar continua, os organizadores das manifestações continuam a ser perseguidos e monitorados. É um total absurdo, precisamos superar esses resquícios do regime antidemocrático para podermos prosseguir na busca de um país mais justo.
Quando achei que talvez tivesse sendo exagerado em meu texto, li na Folha de São Paulo o que Vladimir Safatle escreveu, e o nome é “Pela extinção da PM”.²
O título foi inspirado no conto “A segurança mantida”, que está no livro O Leopardo é Um Animal Delicado, de Marina Colasanti³, e vale a pena ser lido, representa com primor a questão aqui debatida.
O título foi inspirado no conto “A segurança mantida”, que está no livro O Leopardo é Um Animal Delicado, de Marina Colasanti³, e vale a pena ser lido, representa com primor a questão aqui debatida.
¹
²
³
Nenhum comentário:
Postar um comentário