Sabem quando o estômago fica embrulhado só de ler algo absurdo? De escutar besteira? De ver barbaridades sendo cometidas a torto e a direito? Pois é, acho que todos já passamos por isso, por variados motivos evidentemente, visto que cada um tem sua concepção de barbárie e um estômago diferente.
A questão é que estou ficando cansado. Cansado de deixar pra lá,
de fingir que não vi e me omitir – a omissão consome tudo de bom
que pode haver. Mas acompanhando as notícias sobre as manifestações
em Goiânia uma alegria me veio, um respiro, um alívio. Li em algum
lugar que a cidade acordou depois de mil anos e me sinto exatamente
assim, feliz por ver o sol começando a nascer em Goiânia.
Vamos acordando aos poucos, mais por um cansaço, uma dor, uma
vergonha, um sentimento de humilhação do que por qualquer coisa
concreta. Começamos a não tolerar mais sermos tratados como um
grande e imenso nada, um grande e imenso coisíssima nenhuma,
começamos a nos sentir cidadãos, a nos sentirmos gente, e isso vai
aliviando aos poucos a dor.
Essa coisa que não é concreta poderia ser percebida facilmente em
um problema com os ônibus que são péssimos, na polícia assassina,
nos presídios, no preconceito e todas essas coisas abissais com que
as pessoas convivem no dia a dia, e na verdade são bem concretas!
Mas não, não manifestamos apenas por qualquer interesse concreto,
objetivo, de resolver isso ou aquilo.
As coisas não são assim como tentam nos convencer que é... “vai
ser feito um estudo pra ver se o ônibus é mesmo lotado”ou “ahh,
estão investigando os grupos de extermínio” ou ainda “foi feita
uma reunião...” pois se assim fosse, uma questão de mera lógica,
de boa vontade, essa revolta não teria surgido com tamanha força, é
uma questão de poder, dominação ideológica e tudo isso que logo
chamarão de teoria da conspiração, mas que não passa de algo
claro e evidente.
Nosso rancor vem de longe, vem de dentro, vem disso que nos torna
iguais na nossa condição humana, isso de ter orgulho, de ansear pela
justiça. Tentam provar o impossível, dizendo que os ônibus operam
no prejuízo, que o governador nada tem a ver com o bicheiro, que
coelhinho da páscoa existe, tentam ligar a manifestação pelo
transporte a mera questão de preço. Não, não há como ficar
calado, não há como ouvir as besteiras sobre manifestação
pacífica, não existe pacifismo, nunca existiu! A violência ocorre
dia a dia, somos violentados todo o tempo das piores formas que se
pode imaginar, violentam nossos sonhos, violentam nossos corpos,
violentam nosso tempo.
Por isso não fiquemos calados! As vezes parece o melhor a ser
feito, confesso que quase aderi ao vazio. A primeira coisa que
aprendi quando saí da escola pública e começei a conviver na
classe média (na universidade) foi a ficar calado, que essa coisa
toda de reclamar sobre direitos era meio cafona, coisa de comunista,
de gente esquisita, e que para entrar na classe e portanto pertencer
ao grupo o melhor seria se alienar um pouco e não falar de assuntos
“chatos”.
Resolvi ser chato, (já no inicio do segundo curso, um pouco tarde é
verdade) resolvi ter coragem, resolvi lembrar de onde vim e enfrentar
as consequências disso. É feio demais alguém que não honra sua
origem.
Apoio as manifestações, apoio esse grito de desespero, porque a
violência precisa parar. Não a violência contra o ônibus
assegurado, contra o patrimônio que só faz gerar mais patrimônio
que não é do povo nem nunca foi, a violência a qual me refiro é
essa praticada pelo Estado, praticada pela mídia (sustentáculo
deste). Se querem um exemplo prático - pois quem não a sente sempre
achará que é exagero, que seus empregados reclamam demais etc - vou
falar de um rapaz branco, economicamente de “classe média”, que
poderia ser seu filho ou sua filha (ai a coisa fica séria...!), vou
contar a história de alguém que para chegar na universidade pegava
por dia 4 ônibus para ir (isso mesmo produção?) e 4 para voltar da
faculdade. Todos cheios, 2 horas por dia no transporte público de
Goiânia. Esse era eu, e o que via mais da metade dos meus colegas de
sala não conseguiriam nem imaginar.
E eu ? Eu sou neném!! Tinha uma boa vida nessa época, chegava em
casa, almoço na mesa, e embora perdesse esse tempo todo, ia para
faculdade. E quem trabalha? Não 6h, de um estágio, não em uma mesa
de escritório, mas quem põe a mão na massa, quem limpa nossa
bagunça e nem imagina que seus filhos um dia irão fazer faculdade?
Isso enche o saco, para usar uma expressão chula
mas que traduz bem a coisa. Enche o saco!!! Estamos de saco cheio,
queremos ser vistos como gente, estão reclamando porque queimaram um
ônibus, mas tomem cuidado!!! Acabem com isso logo, chamem o
Exército, a Igreja, a mídia para fazer uma boa matéria sobre os
perigos do “comunismo” e todos os velhos amigos, pois que um dia
poderá acontecer como na Revolução Haitiana ou Russa, ou mesmo
Francesa. Um dia o povo se cansa dos abusos e resolve ir fazer uma
visita aos condomínios fechados. Aliás, tem ônibus que vai pra lá?
(Produção responde:
Sim, para levar
os empregados...).
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